Nada é mais incômodo que o silencioso bastar-se dos gatos. O só pedir a quem amam. O só amar a quem os merece.
O homem quer o bicho espojado, submisso, cheio de súplica, temor,  reverência, obediência. O gato não satisfaz as necessidades doentias do  amor. Só as saudáveis.
Lembrei, então, de dizer, dos gatos, o que a observação de alguns anos  me deu. Quem sabe, talvez, ocorra o milagre de iluminar um coração a  eles fechado? Quem sabe, entendendo-os melhor, estabelece-se um grau de  compreensão, uma possibilidade de luz e vida onde há ódio e temor? Quem  sabe São Francisco de Assis não está por trás do Mago Merlin,  soprando-me o artigo?
Já viu gato amestrado, de chapeuzinho ridículo, obedecendo às ordens de  um pilantra que vive às custas dele? Não! Até o bondoso elefante veste  saiote e dança a valsa no circo. O leal cachorro no fundo compreende as  agruras do dono e faz a gentileza de ganhar a vida por ele. O leão e o  tigre se amesquinham na jaula. Gato não. Ele só aceita uma relação de  independência e afeto. E como não cede ao homem, mesmo quando dele  dependente, é chamado de arrogante, egoísta, safado, espertalhão ou  falso.
"Falso", porque não aceita a nossa falsidade com ele e só admite afeto  com troca e respeito pela individualidade. O gato não gosta de alguém  porque precisa gostar para se sentir melhor. Ele gosta pelo amor que lhe  é próprio, que é dele e ele o dá se quiser.
O gato devolve ao homem a exata medida da relação que dele parte. Sábio,  é espelho. O gato é zen. O gato é Tao. Ele conhece o segredo da  não-ação que não é inação. Nada pede a quem não o quer. Exigente com  quem ama, mas só depois de muito certificar-se. Não pede amor, mas se  lhe dá, então ele exige.
Sim, o gato não pede amor. Nem depende dele. Mas, quando o sente, é  capaz de amar muito. Discretamente, porém sem derramar-se. O gato é um  italiano educado na Inglaterra. Sente como um italiano mas se comporta  como um lorde inglês.
Quem não se relaciona bem com o próprio inconsciente não transa o gato.  Ele aparece, então, como ameaça, porque representa essa relação precária  do homem com o (próprio) mistério. O gato não se relaciona com a  aparência do homem. Ele vê além, por dentro e pelo avesso. Relaciona-se  com a essência. Se o gesto de carinho é medroso ou substitui  inaceitáveis (mas existentes) impulsos secretos de agressão, o gato  sabe. E se defende do afago. A relação dele é com o que está oculto,  guardado e nem nós queremos, sabemos ou podemos ver. Por isso, quando  surge nele um ato de entrega, de subida no colo ou manifestação de  afeto, é algo muito verdadeiro, que não pode ser desdenhado. É um gesto  de confiança que honra quem o recebe, pois significa um julgamento.
O homem não sabe ver o gato, mas o gato sabe ver o homem. Se há  desarmonia real ou latente, o gato sente. Se há solidão, ele sabe e  atenua como pode (ele que enfrenta a própria solidão de maneira muito  mais valente que nós). Se há pessoas agressivas em torno ou carregadas  de maus fluidos, ele se afasta. Nada diz, não reclama. Afasta-se. Quem  não o sabe "ler" pensa que "ele não está ali". Presente ou ausente, ele  ensina e manifesta algo. Perto ou longe, olhando ou fingindo não ver,  ele está comunicando códigos que nem sempre (ou quase nunca) sabemos  traduzir.
O gato vê mais e vê dentro e além de nós. Relaciona-se com fluidos,  auras, fantasmas amigos e opressores. O gato é médium, bruxo, alquimista  e parapsicólogo. É uma chance de meditação permanente a nosso lado, a  ensinar paciência, atenção, silêncio e mistério. O gato é um monge  portátil à disposição de quem o saiba perceber.
Monge, sim, refinado, silencioso, meditativo e sábio monge, a nos  devolver as perguntas medrosas esperando que encontremos o caminho na  sua busca, em vez de o querer preparado, já conhecido e trilhado. O gato  sempre responde com uma nova questão, remetendo-nos à pesquisa  permanente do real, à busca incessante, à certeza de que cada segundo  contém a possibilidade de criatividade e de novas inter-relações,  infinitas, entre as coisas. O gato é uma lição diária de afeto  verdadeiro e fiel. Suas manifestações são íntimas e profundas. Exigem  recolhimento, entrega, atenção. Desatentos não agradam os gatos.  Bulhosos os irritam. Tudo o que precise de promoção ou explicação, quer  afirmação. Vive do verdadeiro e não se ilude com aparências. Ninguém em  toda natureza aprendeu a bastar-se (até na higiene) a si mesmo como o  gato!
Lição de sono e de musculação, o gato nos ensina todas as posições de  respiração ioga. Ensina a dormir com entrega total e diluição  recuperante no Cosmos. Ensina a espreguiçar-se com a massagem mais  completa em todos em todos os músculos, preparando-os para a ação  imediata. Se os preparadores físicos aprendessem o aquecimento do gato,  os jogadores reservas não levariam tanto tempo (quase 15 minutos) se  aquecendo para entrar em campo.
O gato sai do sono para o máximo de ação, tensão e elasticidade num  segundo. Conhece o desempenho preciso e milimétrico de cada parte do seu  corpo, a qual ama e preserva como a um templo.
Lição de saúde sexual e sensualidade. Lição de envolvimento amoroso com
dedicação integral de vários dias. Lição de organização familiar e de  definição de espaço próprio e território pessoal. Lição de anatomia,  equilíbrio, desempenho muscular. Lição de salto. Lição de silêncio.  Lição de descanso. Lição de introversão. Lição de contato com o  mistério, com o escuro, com a sombra. Lição de religiosidade sem ícones.
Lição de alimentação e requinte. Lição de bom gosto e senso de  oportunidade. Lição de vida, enfim, a mais completa, diária, silenciosa,  educada, sem cobranças, sem veemências, sem exigências.
O gato é uma chance de interiorização e sabedoria posta pelo mistério à disposição do homem.

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