Neko

segunda-feira, 13 de junho de 2011

O Gato que andava sozinho - Rudyard Kipling

Ouve e atenta e escuta; pois isto deu-se e aconteceu e sucedeu e foi, Ó Mais-que Tudo, quando os animais domésticos eram selvagens. O Cão era selvagem e o Cavalo era selvagem e a Vaca era selvagem e o Carneiro era selvagem e o Porco era selvagem – tão selvagem quanto se pode – e andavam nos Bosques Húmidos e Selvagens na companhia da sua selvagem solidão. Mas o mais selvagem de todos os animais selvagens era o Gato. Andava sozinho e para ele todos os lugares eram o mesmo.
É claro que o Homem também era selvagem. Era assustadoramente selvagem. Nem sequer começou a ficar um pouco domesticado até conhecer a Mulher, e ela lhe dizer que não gostava de viver á sua moda selvagem. Ela escolheu uma bonita Caverna seca, em vez de um monte de folhas húmidas, para nela se deitar; e espalhou areia limpa no chão; e acendeu um belo lume de lenha na parte de trás da caverna, e pendurou uma pele curtida de cavalo selvagem, com a cauda para baixo, atravessada na entrada da Caverna, e disse:
- Limpa os pés, querido, quando entrares, e agora vamos governar a casa.
Nessa noite, Mais-que-Tudo, comeram carneiro bravo assado nas pedras em brasa e condimentado com alho bravo e pimenta brava; e pato bravo recheado com arroz bravo e fenacho bravo; e ossos com tutano de bois bravos; e cerejas bravas e romãs bravas. Depois, Homem adormeceu em frente ao lume, mesmo feliz; mas a Mulher ficou em pé a pentear o cabelo. Pegou no osso do pernil do carneiro – o grande osso achatado da pá – e olhou para as suas maravilhosas marcas e deitou mais lenha no lume e fez uma Magia. Fez a primeira Magia Cantada do mundo.

Lá fora nos Bosques Húmidos e Selvagens todos os animais se juntaram num lugar donde podiam ver o clarão do lume a grande distância e perguntaram-se o que queria dizer.
Depois o Cavalo Selvagem bateu com a sua pata selvagem e disse:
- Ó meus Amigos e Ó meus Inimigos, porque é que o Homem e a Mulher fizeram aquele grande clarão naquela grande Caverna e que danos nos causará?
O Cão Selvagem levantou o seu nariz selvagem e cheirou o cheiro do carneiro assado e disse:
- Vou lá acima e olhar e ver e dizer; porque julgo que é bom. Gato, vem comigo.
- Nenni! – disse o Gato. – Eu sou o Gato que anda sozinho e todos os lugares são o mesmo para mim. Não irei.
- Então não podemos voltar a ser amigos nunca mais – disse o Cão Selvagem, e trotou para a Caverna.
Mas, quando já se tinha afastado um pouco, o Gato disse de si para consigo:
“Todos os lugares são o mesmo para mim. Porque é que eu não hei-de ir lá ver e vir-me embora a meu bel-prazer?”
Assim, esgueirou-se atrás do Cão Selvagem, leve, muito levemente, e escondeu-se onde podia ouvir tudo.
Quando o Cão Selvagem chegou á entrada da Caverna levantou a pele de cavalo curtida com o nariz e cheirou o belo cheiro de carneiro assado e a Mulher, olhando para a pá de carneiro, ouviu-o e riu e disse:
- Aqui vem o primeiro. Coisa Selvagem vinda dos Bosques Selvagens, o que queres?
O Cão Selvagem disse:
- Ó minha Inimiga e Esposa do meu Inimigo, o que é isto que cheira tão bem nos Bosques Selvagens?
Então a Mulher pegou num osso de carneiro assado e atirou-o ao Cão Selvagem e disse:
- Coisa Selvagem vinda dos Bosques Selvagens, prova e experimenta.
O Cão Selvagem roeu o osso e era mais delicioso do que tudo o que já alguma vez provara e disse:
- Ó minha Inimiga e Esposa do meu Inimigo, dá-me outro.
A Mulher disse:
- Coisa Selvagem vinda dos bosques selvagens, ajuda o meu homem a caçar durante o dia a guarda esta Caverna á noite e dar-te-ei tantos ossos assados quantos precisares.
- Ah! – disse o Gato, ao ouvir isto. – Esta é uma mulher muito sensata, mas não é tão esperta quanto eu.
O Cão Selvagem arrastou-se para dentro da Caverna e pousou a cabeça no colo da Mulher e disse:
- Ó minha Amiga e Esposa do meu Amigo, ajudarei o teu homem a caçar durante o dia e á noite guardarei a tua Caverna.
- Ah! – disse o Gato ao ouvir isto. – Este é um Cão muito tonto.
E regressou pelos Bosques Húmidos e Selvagens, a dar com a sua cauda selvagem e a andar na companhia da sua selvagem solidão. Mas nunca contou a ninguém.
Quando o Homem acordou, disse:
- O que está o Cão Selvagem a fazer aqui?
E a Mulher disse:
- Já não se chama Cão Selvagem, mas sim o Primeiro Amigo, porque será nosso amigo para todo o sempre. Leva-o contigo quando fores caçar.
Na noite seguinte a Mulher segou grandes braçadas verdes de erva fresca das várzeas e secou-a ao lume, de modo que cheirava a feno acabado de ceifar, e sentou-se á entrada da Caverna e fez um cabresto entrançado de couro de cavalo e olhou para o osso de pernil de carneiro. Fez a Segunda Magia Cantada no Mundo.
Lá fora nos Bosques Selvagens todos os animais se perguntavam o que tinha acontecido ao Cão Selvagem, e, por fim, o Cavalo Selvagem bateu com a pata e disse:
- Eu vou ver e dizer por que é que o Cão Selvagem não regressou. Gato, vem comigo.
- Nenni! – disse o Gato – Eu sou o Gato que anda sozinho e todos os lugares para mim são o mesmo. Não irei.
Mas mesmo assim, seguiu o Cavalo Selvagem, leve, muito levemente, e escondeu-se onde podia ouvir tudo.
Quando a Mulher ouviu o Cavalo Selvagem a pisar e a tropeçar na sua longa crina, riu e disse:
- Aqui vem o segundo. Coisa Selvagem vinda dos Bosques Selvagens, o que queres?
O Cavalo Selvagem disse:
- Ó minha Inimiga e Esposa do meu Inimigo, onde está o Cão Selvagem?
A Mulher riu, pegou na pá de carneiro e olhou para ele e disse:
- Coisa Selvagem vinda dos Bosques Selvagens, não vieste aqui saber do Cão Selvagem, mas por causa desta boa erva.
E o Cavalo Selvagem, pisando e tropeçando na sua longa crina, disse:
- Isso é verdade; dá-ma para comer.
A Mulher disse:
- Coisa Selvagem vinda dos Bosques Selvagens, verga a tua cabeça selvagem e usa o que te dou eu e comerás da erva maravilhosa três vezes por dia.
- Ah! – disse o Gato, ao ouvir isto -, esta é uma mulher esperta, mas não é tão esperta quanto eu.
O Cavalo Selvagem vergou a sua cabeça selvagem e a mulher passou-lhe o cabresto de couro entrançado e o Cavalo Selvagem fungou na direcção dos pés da Mulher e disse:
- Ó minha Ama e Esposa do meu Amo, serei teu servo por causa da erva maravilhosa.
- Ah! – disse o Gato, ao ouvir isto -, aquele é um cavalo muito tonto.
E regressou pelos Bosques Húmidos e Selvagens, a dar com a sua cauda selvagem e a andar na companhia da sua selvagem solidão. Mas nunca contou a ninguém.
Quando o Homem e o Cão regressaram da caça, o Homem disse:
- O que está o Cavalo Selvagem a fazer aqui?
E a Mulher disse:
- Já não se chama Cavalo Selvagem, mas sim o Primeiro Servo, porque nos transportará de lugar para lugar para todo o sempre. Monta nele quando fores caçar.
No dia seguinte, com a sua cabeça selvagem erguida, para os cornos selvagens não se engancharem nas árvores selvagens, a Vaca Selvagem foi até á Caverna e o gato seguiu-a e escondeu-se tal e qual como antes e tudo aconteceu tal e qual como antes; e o Gato disse as mesmas coisas que dissera antes; e depois de a Vaca Selvagem ter prometido dar o seu leite á Mulher todos os dias em troca da maravilhosa erva, o Gato regressou pelos Bosques Húmidos e Selvagens, a dar com a sua cauda selvagem e na companhia da sua selvagem solidão, tal e qual como antes. Mas nunca contou a ninguém. E quando o Homem e o cavalo e o Cão regressaram da caça e perguntaram as mesmas perguntas tal e qual como antes, a Mulher disse:
- Ela já não se chama Vaca Selvagem mas sim Fornecedora de Bom Alimento. Dar-nos-á leite quente e branco para todo o sempre e eu tomarei conta dela enquanto tu e o Primeiro Amigo e o Primeiro Servo vão á caça.
No dia seguinte o Gato esperou para ver se mais alguma coisa selvagem iria até á Caverna, mas ninguém se mexeu nos Bosques Húmidos e Selvagens, por isso o Gato foi até lá sozinho; e viu a Mulher mungir a Vaca e viu o clarão do lume na Caverna e cheirou o cheiro do leite quente e branco.
O Gato Disse:
- Ó minha Inimiga e Esposa do meu Inimigo, para onde foi a Vaca Selvagem?
A Mulher riu e disse:
- Coisa Selvagem vinda dos Bosques Selvagens, volta para os Bosques outra vez, porque eu entrancei o meu cabelo e arrumei a pá de carneiro mágica e já não temos necessidade de mais amigos ou servos na nossa Caverna.
O Gato disse:
- Eu não sou um amigo e não sou um servo. Sou o Gato que anda sozinho e desejo entrar na tua Caverna.
A Mulher disse:
- Então porque não vieste com o Primeiro Amigo na primeira noite?
O Gato ficou muito zangado e disse:
- O Cão Selvagem andou a falar de mim?
Então a Mulher riu e disse:
- Tu és o Gato que anda sozinho e todos os lugares são o mesmo para ti. Nem és amigo nem servo. Tu próprio o disseste. Vai-te embora e anda sozinho em todos os lugares iguais.
Então o Gato fingiu-se arrependido e disse:
- Não posso entrar nunca na tua Caverna? Não posso nunca sentar-me ao lume quente? Não posso nunca beber o leite quente e branco? Tu és muito sensata e muito bela. Não devias ser cruel nem mesmo para um Gato.
A Mulher disse:
- Eu sabia que era sensata mas não sabia que era bela. Por isso, farei um acordo contigo. Se alguma vez eu disser uma palavra em teu louvor, poderás entrar na Caverna.
- E se disseres duas palavras em meu louvor? – disse o Gato.
- Nunca o farei – disse a Mulher – mas, se disser duas palavras em teu louvor, poderás sentar-te ao lume na Caverna.
- E se disseres três palavras? – disse o Gato.
- Nunca o farei – disse a Mulher -, mas, se disser três palavras em teu louvor poderás beber o leite quente e branco três vezes por dia para todo o sempre.
Então o gato arqueou o dorso e disse:
- Agora que a Cortina na abertura da Caverna e o Lume na parte de trás da Caverna e os Potes de leite que estão ao lado do Lume lembrem o que a minha Inimiga e Esposa do meu Inimigo disse.
E foi-se embora pelos Bosques Húmidos e Selvagens, a dar com a sua cauda selvagem e a andar na companhia da sua selvagem solidão.
Nessa noite, quando o Homem e o cavalo e o Cão regressaram da caça, a Mulher não lhes contou o acordo que tinha feito com o Gato, porque receava que não lhes agradasse.
O Gato foi para muito, muito longe e escondeu-se nos Bosques Húmidos e Selvagens na sua selvagem solidão durante muito tempo, até a Mulher o esquecer de todo. Só o Morcego - o pequeno Morcego de pernas para o ar – que estava dependurado no interior da Caverna, sabia onde o Gato se escondia e todas as noites voava até ao Gato com notícias do que estava a acontecer.
Uma noite, o Morcego disse:
- Há um Bebé na Caverna. É novo e cor-de-rosa e gordo e pequeno e a Mulher gosta muito dele.
- Ah – disse o Gato ao ouvir isto - , mas do que é que gosta o Bebé?
- Gosta de coisas que sejam macias e façam cócegas – disse o Morcego – Gosta de coisas quentes para abraçar quando vai dormir. Gosta que brinquem com ele. Gosta de todas estas coisas.
- Ah – disse o Gato ao ouvir isto -, então chegou a minha vez.
Na noite seguinte o Gato atravessou os Bosques Húmidos e Selvagens e escondeu-se muito perto da Caverna até de manhã, e o Homem e o Cavalo foram á caça.
A Mulher estava atarefada a cozinhar nessa manhã e o Bebé chorava e interrompia-a. Por isso ela levou-o para fora da Caverna e deu-lhe um punhado de seixos para brincar. Mas mesmo assim, o Bebé continuava a chorar. Então o Gato esticou a sua pata fofa e fez uma festa na face do Bebé e ele arrulhou; e o Gato roçou-se contra os seus joelhos rechonchudos e fez-lhe cócegas debaixo do queixo rechonchudo com a sua cauda. E o Bebé riu; e a Mulher ouviu-o e sorriu.
Então o Morcego – o pequeno Morcego de pernas para o ar – que estava dependurado na abertura da Caverna, disse:
- Ó minha Anfitriã e Esposa do meu Anfitrião, uma Coisa Selvagem dos Bosques Selvagens está a brincar lindamente com o teu Bebé.
- Louvada seja essa Coisa Selvagem, quem quer que seja – disse a Mulher, endireitando as costas – porque eu estava muito atarefada esta manhã e ele prestou-me um serviço.
Nesse preciso minuto e segundo, Mais-que-Tudo, a Cortina de pele de cavalo curtida, que estava pendurada com a cauda para baixo na abertura da Caverna, tombou – uche! – porque se lembrou do acordo que ela tinha feto com o Gato; e quando a Mulher ia para a levantar do chão, eis que o gato estava sentado todo refastelado no interior da Caverna.
- Ó minha Inimiga e Esposa do meu Inimigo – disse o Gato – sou eu: porque tu disseste uma palavra em meu louvor e agora eu posso sentar-me dentro da caverna para todo o sempre. Mas continuo a ser o Gato que nada sozinho e todos os lugares são o mesmo para mim.
A Mulher ficou muito zangada e comprimiu os lábios e pegou numa roca e começou a fiar.
Mas o Bebé chorou, porque o Gato se tinha ido embora, e a Mulher não conseguiu sossegá-lo, porque ele debatia-se e pontapeava e ficou com a cara toda roxa.
- Ó minha Inimiga e Esposa do meu Inimigo – disse o Gato – pega num fio da linha que estás a fiar e ata-o á tua roca e arrasta-o pelo chão e eu mostrar-te-ei uma Magia que fará o teu Bebé rir tão alto como chora agora.
- Fá-lo-ei – disse a Mulher – porque não sei para onde me virar, mas não te agradecerei.
Atou o fio ao pequeno contrapeso de barro da roca e arrastou-o pelo chão e o gato correu atrás dele e deu-lhe com as patas e deu cambalhotas e atirou-o para trás por cima do ombro e andou atrás dele entre as suas pernas traseiras e fez de conta que o tinha perdido e atirou-se em cima dele outra vez até que o Bebé se riu tão alto como chorara e gatinhou atrás do Gato e andou em folguedos pela Caverna inteira até ficar cansado e se deitar para dormir com o gato nos braços.
- Agora – disse o gato – vou cantar uma canção ao Bebé que o manterá adormecido durante uma hora.
E começou a ronronar, alto e baixo, alto e baixo, até o bebé cair num sono profundo. A mulher sorriu ao olhar para os dois e disse:
- Isso foi maravilhosamente feito. Não há dúvida que és muito esperto, ó Gato.
Nesse preciso minuto e segundo, Mais-que-Tudo, o fumo do lume na parte de trás da Caverna desceu em nuvens do telhado – puff! – porque se lembrou do acordo que ela tinha feito com o Gato; e quando se dissipou, eis que o Gato estava sentado todo refastelado perto do Lume.
- Ó minha Inimiga e Esposa do meu Inimigo – disse o Gato – sou eu: porque tu disseste uma segunda palavra em meu louvor e agora posso sentar-me ao pé do lume quente para todo o sempre. Mas continuo a ser o Gato que anda sozinho e todos os lugares são o mesmo para mim.
Então a Mulher ficou muito muito zangada e soltou o cabelo e pôs mais lenha no lume e pegou na pá de carneiro e começou a fazer uma magia que se destinava a impedi-la de dizer uma terceira palavra em louvor ao Gato. Não era uma Magia Cantada, era uma Magia Silenciosa; e pouco depois a Caverna ficou tão silenciosa que um pequenino ratinho se esgueirou de um canto e atravessou o chão a correr.
Ó minha Inimiga e Esposa do meu Inimigo – disse o Gato – aquele ratinho faz parte da tua Magia?
- Ui! Chi! De maneira nenhuma! -disse a Mulher e deixou cair a pá de carneiro e saltou para cima do banco que estava em frente do lume e entrançou o cabelo muito depressa, com receio que o rato lhe corresse por ele acima.
- Ah – disse o Gato, olhando – então o rato não me fará mal, se eu o comer?
- Não – disse a Mulher, entrançando o cabelo – come-o depressa e ficar-te-ei eternamente grata.
Gato deu um salto e apanhou o ratinho e a Mulher disse:
- Muito agradecida. Nem mesmo o Primeiro Amigo é suficientemente rápido para apanhar ratinhos como tu. Deves ser muito esperto.
Nesse preciso momento e segundo, ó Mais-que-Tudo, o Pote de Leite que estava ao lado do lume rachou-se em dois – ffft! – porque se lembrou do acordo que ela tinha feito com o Gato; e quando a Mulher saltou do banco estava o Gato a lamber o leite branco e quente que ficara num dos pedaços partidos.
- Ó minha Inimiga e Esposa do meu Inimigo e Mãe do meu Inimigo – disse o Gato – sou eu: porque disseste uma terceira palavra em meu louvor e agora eu posso beber o leite quente e branco três vezes por dia para todo o sempre. Mas, mesmo assim, continuo a ser o Gato que anda sozinho e todos os lugares são o mesmo para mim.
Então a Mulher riu-se e pôs ao Gato uma tigela de leite quente e branco e disse:
- Ó Gato, és tão esperto como um homem, mas lembra-te que o teu acordo não foi feito com o Homem ou com o Cão, e eu não sei o que eles farão quando chegarem a casa.
- E isso que me interessa? – disse o Gato – Se eu tiver o meu lugar na Caverna ao pé do Lume e o meu leite branco e quente três vezes ao dia não me importa o que o Homem ou o cão possam fazer.
Nessa noite, quando o Homem e o Cão entraram na Caverna, a Mulher contou toda a história do acordo enquanto o Gato se deixou ficar sentado ao pé do lume a sorrir. Então o Homem disse:
- Sim, mas comigo é que ele não fez um acordo, nem comigo nem com todos os homens a sério que se me seguirão.
Depois tirou as duas botas de couro e pegou na machadinha de pedra (o que faz três) e foi buscar um pedaço de madeira e um machado (faz cinco ao todo) e pô-los em fila e disse:
- Agora faremos um acordo muito nosso. Se não apanhares ratos quando estiveres na Caverna para todo o sempre, atirar-te-ei com estas cinco coisas sempre que te veja, e assim farão todos os homens a sério que se me seguirão.
- Ah – disse a Mulher, ao ouvir isto – este é um Gato muito esperto, mas não é tão esperto como o meu Homem.
O Gato contou as cinco coisas (e pareciam muito bicudas) e disse:
- Apanherei ratos quando estiver na Caverna para todo o sempre; mas mesmo assim, continuo a ser o Gato que anda sozinho e todos os lugares são o mesmo para mim.
- Não quando eu estiver por perto – disse o Homem. – Se não tivesses dito esta última frase, eu teria posto estas coisas de lado para todo o sempre, mas agora vou atirar as minhas duas botas e a minha machadinha de pedra (faz três) a ti sempre que te encontrar. E assim farão todos os homens a sério que me seguirão!
Então o Cão disse:
- Espera um minuto. Comigo é que ele não fez um acordo, nem comigo nem com todos os cães a sério que se me seguirão.
E mostrou os dentes e disse:
- Se não fores amigo do bebé enquanto estiveres na Caverna, para todo o sempre, perseguir-te-ei até te apanhar, e quando te apanhar, morder-te-ei. E assim farão todos os cães a sério que se me seguirão!
- Ah – disse a Mulher, ao ouvir isto – este é uma Gato muito esperto, mas não é tão esperto como o Cão.
O Gato contou os dentes do Cão (e pareciam muito afiados) e disse:
- Serei amigo do Bebé, desde que ele não me puxe a cauda com demasiada força, para todo o sempre. Mas, mesmo assim, continuo a ser o gato que anda sozinho e todos os lugares são o mesmo para mim!
- Não quando eu estiver por perto – disse o Cão. – Se não tivesses dito essa última frase eu teria fechado a boca para todo o sempre; mas sendo assim vou dar-te caça até trepares para cima de uma árvore sempre que te encontrar - E assim farão todos os cães a sério que se me seguirão!
Depois o Homem atirou as suas duas botas e a sua machadinha de pedra (faz três) ao gato, e o Gato fugiu a correr da Caverna e o Cão perseguiu-o até ele trepar por uma árvore; e de então para cá, Mais-que-Tudo, três em cada cinco Homens a sério atiram coisas a um Gato sempre que o encontram, e todos os Cães a sério o perseguirão até ele trepar por uma árvore. Mas o Gato também respeita a sua parte do acordo. Mata ratos e é amigo dos Bebés quando está dentro de casa, desde que eles não lhe puxem a cauda com muita força. Mas depois de fazer isso, e entre uma coisa e outra, e quando a Lua se levanta e vem a noite, ele é o gato que anda sozinho e todos os lugares são o mesmo para ele. Então vai para os Bosques Húmidos e Selvagens ou sobe ás arvores húmidas e Selvagens ou aos Telhados Húmidos e Selvagens, a dar com a sua cauda selvagem e a andar na companhia da sua selvagem solidão. 



Histórias assim mesmo / Rudyard Kipling. – Lisboa : Caminho, 1999.
As Histórias Assim Mesmo, publicadas em livro em 1902 e ilustradas pelo próprio autor, são histórias inventadas e contadas por Kipling aos seus filhos e a crianças amigas ao longo de vários anos. Os contos explicam de forma criativa certos fenómenos naturais e civilizacionais intrigantes: como o elefante arranjou a tromba e o camelo a sua bossa, como apareceu a primeira letra.... Rudyard Kipling que recebeu em 1907 o Prémio Nobel da Literatura utiliza na construção destes pequenos mitos uma linguagem lúdica, subvertendo a tendência científica, moralizante e didáctica do mundo adulto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário