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domingo, 24 de julho de 2011

Nelson Ascher - Crônica

O melhor amigo do homem
A arrogância humana não tem limites. Que séculos atrás se tomasse a Terra como centro do universo, talvez fosse um equívoco derivado de um ponto-de-vista distorcido. Afinal, levou tempo para que a física moderna se desenvolvesse. Mas que ainda hoje os membros de uma espécie tão defeituosa moralmente quanto em termos de "design" se considerem o topo, o cimo, o ápice da criação é algo que decorre claramente da cegueira auto-induzida.
Um animal como a gente, que passa seus três primeiros anos de vida feito um feto extra-uterino, que demora para se equilibrar sobre as patas traseiras e, até o fim, tropeçando, sofrendo dores de coluna, jamais se acostuma a tal postura, um bicho que, inadaptado ao grosso dos climas, se especializou em roubar peles alheias e suou milênios como um porco (que, aliás, não sua) antes de comprar um ar-condicionado, um mamífero cujas fêmeas, ao contrário do que sucede com as demais, não tem nem ao menos um período determinado e ostensivo de cio e chegam a morrer de parto deve ser qualificado de paradigma da perfeição?
OK: somos os detentores da patente da linguagem, digamos, articulada. Temos um cérebro grande (embora não proporcionalmente maior que o dos predadores em geral) e o utilizamos até para criar coisinhas úteis. Ocorre que quase todas as nossas invenções não passam de próteses destinadas a mal e mal compensar desvantagens de nascença. E ciência alguma nos desculpa ignorarmos tamanhas limitações: elas saltam aos olhos quando nos comparamos com nossos melhores amigos.
Essa honra (mais para nós que para eles) pertence, há 1/4 de século, não ao cachorro, mas ao gato. Foi no começo dos anos 80, nos EUA, que sua popularidade superou a de seus clássicos rivais. Estima-se que atualmente os americanos possuam quase 70 milhões de gatos enquanto a população canina anda ao redor de 62 milhões. Mudanças aceleradas no estilo de vida explicam o pendor crescente pelos gatos que são autolimpantes, discretos e ficam sozinhos o dia inteiro sem incomodar os vizinhos. O empecilho que os tornava inadequados à vida caseira, ou seja, o cheiro agressivo de sua urina, encontrou uma solução em 1947 quando o norte-americano Ed Lowe (1920-95) descobriu que um tipo de argila absorvia os dejetos líquidos dissipando-lhes o fedor. Desnecessário dizer que o inventor dos granulados sanitários morreu milionário.
Se existe uma criatura cuja perfeição escancara comparativamente a ilimitada defeituosidade humana, é, portanto, o gato. Dispondo de uma visão noturna seis vezes superior à humana, de uma audição vinte vezes mais potente, de vibrissas (os bigodes) cheias de sensores, ele sobrevive a quedas que seriam letais para outros seres e administra o próprio sono, distribuindo-o dia afora como lhe convém . E isso vale para toda a linhagem, dos gatos domésticos aos tigres, das jaguatiricas às onças, do guepardo (ou chita), capaz de atingir 100 km/h, à pantera negra, pois, descontando as dimensões variáveis e os hábitos adaptados aos respectivos habitats, as principais diferenças de fundo entre os felinos são duas: os pequenos comem sentados ou acocorados e ronronam, mas não rugem; os grandes comem deitados e rugem mas não ronronam.
Com exceção do gato propriamente dito, nenhum de seus parentes foi domesticado. Embora alguns cheguem a ser individualmente domados, ninguém com um mínimo de instinto de sobrevivência vê na tranquilidade de um tigre ou leão de circo mais que um armistício temporário que pode ser unilateralmente rompido a qualquer momento. Agora, que tenhamos
domesticado um de seus representantes não desmerece, de certo modo, todo o grupo?
Não necessariamente, uma vez que não se estabeleceu quem é que de fato domesticou quem. Apesar de os esqueletos mais antigos de cachorros convivendo com humanos datarem de uns 15 mil anos atrás, alguns pesquisadores supõem que principiamos a modificar geneticamente o lobo selvagem 80 mil anos antes. Se, como carnívoro, o cachorro é nosso competidor, sua utilidade numa sociedade tribal de caçadores parece óbvia. As primeiras referências seguras aos gatos são, no entanto, bem mais recentes, têm quatro ou cinco mil anos e provêm do Egito, nação que lhes conferiu o estatuto de animais sagrados, associando-os à deusa Bastet (ou Bast, ou Pasht), filha de Ísis e Osíris.
Nada indica que os tenhamos realmente alterado. Nosso convívio com eles coincide com a adoção do sedentarismo e o surgimento da agricultura que inaugura o neolítico. Agricultura quer dizer acúmulo de grãos. Grãos atraem roedores. E logo chegam os gatos. Não sei se alguém fez as contas, mas sem estes, quem sabe os roedores teriam ganho a competição contra o homo sapiens sapiens. Quando, durante a Idade Média, os felinos europeus foram demonizados e perseguidos, ratos asiáticos portadores da peste bubônica invadiram o continente e, graças a eles, 1/3 da população local pereceu. Por tênue e dificilmente demonstrável que seja, a correlação não é absurda. Seja como for, o gato associou-se voluntariamente aos homens que se adaptaram tanto a ele quanto ele a nós.
Assim, a única coisa melhor do que ser um gato é ser um gato anglo-saxão, porque se o resto do planeta lhe atribui sete vidas, em inglês ele tem proverbialmente nove. E se sua perfeição e utilidade estão demonstradas, não temos como deduzir qual terá sido o desígnio divino que lhe deu origem. Uma interpretação, tão acertada que mereceria ser de Jorge Luis Borges, resume-se na seguinte frase: "Deus criou o gato para que o homem pudesse afagar o tigre".

Folha de SP - 26/01/2004

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